
O cerceamento de defesa frente à ausência de juntada da integralidade de provas aos autos
24 de junho de 2020Memória humana: um desenho da realidade.

A prova testemunhal é o meio de prova mais utilizado no processo de competência do Tribunal do Júri. Ao ler o texto do querido amigo e colega Marçal Carvalho – a quem desde já rendo minhas homenagens e agradeço pelo carinho que me foi dispensado, fruto, evidentemente, da nossa longa amizade – , tive vontade de escrever sobre a memória humana, eis que o assunto mais do que instigante é, sem dúvida, extremamente relevante no âmbito processual.
A partir do artigo do Marçal me dei conta de que muitos detalhes daquele processo que foram por ele tão bem pontuados, não faziam mais parte das minhas lembranças ou por mim eram lembrados de uma forma um pouco diversa.
Isso se deve à atenção dispensada por cada um de nós diante dos fatos daquele processo e a forma como cada um trabalhou os detalhes do caso durante o julgamento.
É lógico: o Marçal trabalhou os fatos. Contou a história do réu e da vítima para os jurados e, nesse ponto, fui mero espectador com a atenção voltada para o que eu iria trabalhar em seguida. Pois quando falo daquele julgamento, falo da impressão que tive daquilo que o Marçal falou e não propriamente daquilo que ele efetivamente falou.
Pois quando falo, ainda que de forma diferente daquela contada pelo colega, não estou faltando com a verdade, muito embora hoje perceba que é a versão do Marçal a mais fidedigna.
Isso porque, como ensina o professor Jorge Trindade em seu Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito “a percepção humana é variável e vulnerável a inúmeros fatores, sejam reais ou fantasmáticos, externos ou internos, conscientes ou inconscientes, patológicos, ou, como se viu, simplesmente considerados normais no contexto da complexidade da existência humana”.
Concluindo na mesma linha do professor, toda a percepção será sempre uma apercepção, ou seja, a realidade (nua e crua) com a soma do valor que nós atribuímos ao fato.
Este valor atribuído, como destacou Mira y López na sua obra Quatro Gigantes da Alma, pode advir da “angústia do medo, da impulsiva fúria da cólera, pelo arrebatador êxtase amoroso ou pelo implacável imperativo categórico do dever.”
Por isso, não me parece correto afirmar que duas pessoas que presenciam o mesmo fato devam prestar testemunhos idênticos, eis que a suas percepções – que são apercepções – variam de acordo com os seus sentimentos no momento do fato e também por outras circunstâncias que interferem diretamente na percepção.
Isso interessa diretamente ao processo, eis que condenações e absolvições ocorrem muitas vezes amparadas exclusivamente na prova testemunhal.
Certo é que as pessoas, ao prestarem seu depoimento sobre fato presenciado, querem esclarecer aquilo que perceberam sem deixar dúvidas. Importa, pois, trazer aos autos a informação completa do fato, mesmo que não tenham presenciado o todo.
Nós definitivamente não fomos treinados para termos dúvidas. O mundo nos cobra a certeza. Essa cobrança social pela certeza interfere inconscientemente na psicologia do testemunho.
Percebam: estou na minha sala do escritório e pela janela vejo um homem apontando uma arma de fogo para uma mulher. Isso chama a minha atenção e passo a observar a cena. Antes disso não prestava a atenção e logo não poderia afirmar se houve ou não briga ou discussão entre ambos. Eis que passa um ônibus e me tira a visão dos dois por cinco segundos, tempo suficiente para o homem sair da cena e permanecer apenas a mulher caída ao chão.
Vou à delegacia de polícia e presto meu depoimento, fazendo um reconhecimento do atirador, que disparou contra a mulher sem que houvesse qualquer discussão anterior entre ambos.
Então sou alertado pelo Delegado que a mulher não sofreu um ferimento por um tiro de arma de fogo e sim por uma faca. Nesse instante eu paro para pensar e lembro do ônibus e de que não pude ver o momento exato da agressão. Vejam que esse detalhe só veio aos autos porque não foi um tiro, mas uma facada.
Caso fosse um ferimento produzido por uma arma de fogo, minha versão – que não correspondia à realidade – restaria então consolidada nos autos. Certamente chegaria em casa e contaria o ocorrido para minha esposa e familiares. No outro dia contaria para os amigos, reafirmando cada vez mais a equivocada percepção na minha memória.
Ao escrever sobre as falsas memórias, Antonio L. Manzanero, Doutor em Psicologia e Professor de Psicologia da Percepção e Psicologia do testemunho da Faculdade de Psicologia da Universidade Complutense de Madrid, ensina que nossas memórias geralmente são como desenhos da realidade em que certas características se destacam mais do que outras.
Quando somos provocados a falar sobre o ocorrido, de forma implícita nos pedem uma história coerente e completa do evento. Ou seja, precisamos entregar uma foto a partir da caricatura e, para realizar esta tarefa, acabamos preenchendo os detalhes existentes ou não existentes do evento que armazenamos em nossa memória.
Esse preenchimento das lacunas de nossas memórias é feito através de deduções que coletam informações de nosso conhecimento anterior, experiências vividas e, inclusive, informações recebidas após o evento.
Enrico Altavilla, em seu Psicologia Judiciária, alerta para essa influência das percepções anteriores como importante fator de ilusão: “Mas imagine-se que pouco antes havíamos encontrado um caçador e se ouve, depois, um ruído semelhante a um tiro de espingarda, e podemos estar certos que, sem hesitação, afirmaremos que se trata precisamente de um tiro de espingarda (…) E poderá, pelo contrário, tratar-se de um tiro de revólver ou até de outro ruído que nada tenha a ver com uma arma. Algumas vezes, estamos tão obcecados por um estudo feito, por um pensamento que nos agita, a ponto de projectarmos imagens que são fixadas no nosso cérebro, deformando a percepção real que foi a sua causa determinante.”
Sobre informações recebidas após o evento que geram confusão na memória, Davies y Loftus relatam um exemplo de falsa memória envolvendo o acidente aéreo do voo 800 da companhia TWA, ocorrido em 17 de julho de 1996, nos Estados Unidos, em que morreram 230 pessoas. Algumas testemunhas descreveram o acidente de modo que suas declarações eram consistentes no sentido de terem visto um míssil atingir o avião. Acontece que alguns investigadores e os meios de comunicação inicialmente divulgaram essa teoria como possível causa da queda. No entanto, ficou comprovado que não foi essa a causa do acidente e sim por uma faísca elétrica que inflamou o combustível nos tanques e explodiu a aeronave.
Ou seja, as testemunhas foram sugestionadas por informações inverídicas recebidas após o fato que acabaram contaminado suas memórias em relação ao que realmente viram. É bastante comum, principalmente em processos de repercussão midiática, que testemunhas prestem depoimentos contaminadas com aquilo que leram nos jornais sobre o fato, confundindo o que leram com o que realmente sabem.
No mesmo sentido, não se pode dizer que o réu mentiu porque na reconstituição do fato posicionou a arma em local incompatível com o ferimento causado pelo tiro, pois sua percepção também pode estar contaminada pelo sentimento de medo provocado pelo confronto.
Como se vê, a percepção humana é falível, variável e vulnerável a inúmeros fatores. Exigir que uma testemunha, réu ou vítima conte os fatos com clareza de detalhes é, por vezes, exigir algo muito difícil que vai além da própria capacidade humana.
E porque é tão difícil? Jorge Trindade, Antonio Manzanero, Mira y López e Enrico Altavilla explicam com maestria através da psicologia do testemunho. Jayme Caetano Braun, através de sua poesia, pois todo gaúcho sabe que “não há quem pinte o retrato dum bochincho quando estoura”.