
A presunção de inocência x confissão em sede policial e provas robustas
17 de junho de 2020
Memória humana: um desenho da realidade.
1 de julho de 2020O cerceamento de defesa frente à ausência de juntada da integralidade de provas aos autos

Prezados leitores:
O presente artigo diz respeito ao cerceamento de defesa gerado a partir da ausência de juntada, por parte do Ministério Público, da integralidade de provas ao processo.
É exigência lógica que a totalidade das provas produzidas em procedimento investigatório criminal sejam juntadas aos autos na sua integralidade, para fins de assegurar a ampla defesa e o contraditório, dimensões elementares do devido processo legal e cânones essenciais do Estado Democrático de Direito. Tais fundamentos são encontrados no escólio dos eminetes Desembargadores da Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que, com maestria, enfrentaram a matéria ora discutida, nos autos da Apelação-Crime nº 70079034575, de relatoria do Des. Rogério Gesta Leal, julgada no dia 09/05/2019. Vejamos:
Ementa: APELAÇÃO CRIME. CORRUPÇÃO ATIVA E PASSIVA. ARTS. 333, PARÁGRAFO ÚNICO, E 317, §2º, AMBOS DO CP. LAVAGEM DE DINHEIRO. DO ART. 1º, INC. V, E § 1º, INC. II, DA LEI Nº 9.613/98. PRELIMINARES DE INÉPCIA DA DENÚNCIA, NULIDADE DO FEITO E NULIDADE DA SENTENÇA AFASTADAS. MATERIALIDADE A AUTORIA DOS DELITOS DEVIDAMENTE COMPROVADAS. SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. CONDENAÇÕES MANTIDAS. PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE QUE NÃO COMPORTAM ALTERAÇÃO. INVIÁVEL O RECONHECIMENTO DA CONTINUIDADE DELITIVA.
(…)
VI – Conforme o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, a preservação da cadeia de custódia “tem como objetivo garantir a todos os acusados o devido processo legal e os recursos a ele inerentes, como a ampla defesa, o contraditório e principalmente o direito à prova lícita. Isso não significa dizer, contudo, que toda e qualquer prova coletada deva primeiro passar pelo crivo do Poder Judiciário para depois ser remetida ao órgão acusador para análise. O que se exige é tão somente a juntada da integralidade da prova pelo Ministério Público, que proporcione o contraditório e devido processo legal, o que ocorreu na espécie. VII – Inexiste qualquer óbice para que o próprio Parquet proceda à análise técnica das provas coligidas em sede de procedimento investigatório criminal, desde que as mesmas sejam juntadas aos autos na sua integralidade para fins de assegurar a ampla defesa e o contraditório, o que ocorreu no presente caso.
Para melhor abordar o assunto, trago como exemplo um processo em que fomos constituídos pelo réu, após a sentença condenatória, para exercer sua defesa em Recurso de Apelação.
Neste caso, ao compulsar os autos, constatamos duas nulidades a serem arguidas em relação à prova processual: o Ministério Público não juntou no processo os telefones celulares apreendidos e periciados (juntou apenas depois da sentença condenatória), sonegando a prova da defesa e do juízo, assim como não juntou a integralidade das interceptações telefônicas.
Pois bem, quanto aos celulares não juntados:
No início das investigações o Ministério Público representou pela expedição de Mandado de Busca e Apreensão dos aparelhos celulares dos réus do processo. A representação foi deferida e os mandados devidamente cumpridos.
Dias após, o Parquet juntou aos autos Relatório de Análises de Apreensões de aparelhos de telefonia móvel apreendidos com os réus, realizado por um policial militar cedido ao Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, constando que não foram encontradas informações relevantes ao objeto da investigação.
Contudo, O Ministério Público não juntou com o referido relatório os aparelhos apreendidos no processo (ambiente público e imparcial) para que a defesa pudesse analisá-los. Estranhamente, o MP fez a juntada dos celulares apenas QUASE DOIS MESES depois de prolatada a SENTENÇA.
Insta assinalar que, apesar de negar com veemência, o réu responde também uma acusação de coação no curso do processo, sugerindo que o mesmo tenha feito movimentos a partir do cumprimento do primeiro mandado de busca e apreensão, ocorrido três dias antes de sua prisão e apreensão do seu aparelho celular. Ou seja, poderia existir nesses celulares algum rastro capaz de demonstrar a inexistência da coação.
É direito da defesa ter acesso a essa prova. É dever do Poder Judiciário permitir esse acesso. Não basta que um policial militar, que sequer perito é, faça uma análise e diga o que importa e o que não importa para o processo, sem sequer preservar as diligências realizadas. Deveria, obrigatoriamente, acompanhar o relatório um arquivo digital com todo o conteúdo do celular! Não foi preservada a cadeia de custódia da prova.
Ora, tudo que é apreendido em uma investigação deve vir ao ambiente público do processo, para que as partes e juízo tenham amplo conhecimento da prova e possam, a partir de suas análises, decidirem o que interessa e o que não interessa ao processo.
Apesar de não se desconhecer a existência de discussões doutrinárias a respeito da natureza jurídica do Parquet no âmbito criminal, a posição que mais se coaduna com a realidade do processo penal brasileiro seguramente é a que defende que o referido órgão atua como parte parcial na ação penal. E se isto é assim, é inconcebível aceitar que a parte acusadora, dentro da sua própria estrutura, pericie de forma unilateral os celulares apreendidos e, posteriormente, simplesmente apresente aos autos do processo criminal o respectivo relatório asseverando que nada de significativo se achou, sem possibilitar qualquer acesso ao conteúdo que foi extraído e aos próprios celulares apreendidos, os quais foram devolvidos vários dias após o juízo condenatório.
É oportuno ressaltar que o efetivo exercício do contraditório e da ampla defesa, expressamente consagrados na CF/88, somente se opera por ocasião do ingresso dos elementos probatórios nos autos do processo, já que evidentemente tem como ponto de partida o conhecimento da informação. Neste sentido, a Suprema Corte já pontuou o rigor com que os atos de investigação devem estar formalizados nos autos de qualquer procedimento investigatório. In verbis:
“(…) Cabe advertir, ainda, que à semelhança do que se registra no inquérito, o procedimento investigatório instaurado pelo Ministério Público DEVERÁ CONTER TODAS AS PEÇAS, termos de declarações ou depoimentos e laudos periciais que tenham sido coligidos e realizados no curso da investigação, não podendo, o representante do ‘Parquet”, SONEGAR, SELECIONAR ou DEIXAR DE JUNTAR, aos autos, quaisquer desses elementos de informação, cujo conteúdo, por referir-se ao objeto da apuração penal, DEVERÁ SER TORNADO ACESSÍVEL À PESSOA SOB INVESTIGAÇÃO.
Assiste, portanto, ao investigado, bem assim ao seu Advogado, o direito de acesso aos autos, podendo examiná-los, extrair cópias ou tomar apontamentos (Lei n.º 8.906/94, art. 7º, XIV), observando-se quanto a tal prerrogativa, orientação consagrada em decisões proferidas por esta Suprema Corte (Inq 1.867/DF, Rel. min. CELSO DE MELLO – MS 23.836/DF, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, v.g.), mesmo quando a investigação esteja sendo processada em caráter sigiloso, hipótese em que o advogado do investigado, desde que por este constituído, poderá ter acesso às peças que instrumentalizam prova já produzida nos autos (Sumula Vinculante n.º 14/STF).”
A defesa técnica tem direito inalienável de ter acesso integral às provas para impugnar a versão acusatória, fazer sua própria interpretação, expor sua própria narrativa e formar sua própria opinião sobre o que é relevante e significativo para o esclarecimento da verdade dos fatos. As provas destinam-se ao Juízo e não à Acusação.
Bem por isto, o Parquet não pode sonegar, selecionar ou deixar de juntar, aos autos do processo criminal, o conteúdo extraído dos celulares apreendidos. Deveria, isto sim, franquear o acesso integral à prova que se identifique exatamente e integralmente àquela que foi colhida.
Quanto a ausência da integralidade das interceptações telefônicas:
Após analisarmos detalhadamente, constatamos que os cds/dvds constantes nos autos não contemplavam a integralidade das gravações das interceptações telefônicas.
Assim, requeremos a intimação do Ministério Público para que informasse a localização da mídia que faltava, o que foi determinado pela Magistrada e, após uma breve manifestação do Parquet, foi juntado pelo mesmo a integralidade das interceptações. Desse modo, percebemos que além de o réu ter sido condenado sem a juntada dos celulares apreendidos, também foi condenado com a ausência nos autos de mais de dez mil interceptações telefônicas.
Constatado isso, passamos a examinar por amostragem algumas ligações que não foram aos autos e, assim, encontramos escutas que mereciam destaque e demonstravam o efetivo prejuízo ao exercício de defesa. Ligações que poderiam levar a absolvição do réu em relação aos crimes de coação no curso do processo. Ligações que, se analisadas durante a instrução processual, oportunizariam a defesa anterior a realização de perguntas importantíssimas às testemunhas e até mesmo às vítimas.
A ausência de integralidade das interceptações no processo viola a garantia da ampla defesa. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já decidiu:
APELAÇÃO. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PRELIMINAR DE NULIDADE. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. GRAVAÇÕES. PROVA. A juntada aos autos do CD com o áudio das conversas interceptadas é imprescindível para a realização plena da garantia da ampla defesa. Precedentes do STF. Possível a juntada no CD aos autos, pois entregue à autoridade policial, mas não remetida a mídia ao processo, configurado está o cerceamento de defesa a justificar a desconstituição da decisão condenatória. Imprescindibilidade do acesso à gravação para verificação do conteúdo degravado. Nulidade reconhecida. PRELIMINAR DE NULIDADE ACOLHIDA. MÉRITO PREJUDICADO.(Apelação Crime, Nº 70045568979, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em: 19-04-2012). (grifo nosso).
No mesmo sentido o STJ:
É assente no Superior Tribunal de Justiça, bem como no Supremo Tribunal Federal, o entendimento no sentido da desnecessidade de transcrição integral do conteúdo das interceptações telefônicas, uma vez que a Lei n. 9.296/1996 não faz qualquer exigência nesse sentido, bastando que se confira às partes acesso aos diálogos interceptados. Dessarte, suficiente a entrega da totalidade dos áudios captados à defesa, portanto não há se falar em nulidade no caso dos autos.” (HC 422.642/SP, j. 25/09/2018).
RECURSO ESPECIAL. ART. 305 DO CPM. NULIDADE. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. PROVA EMPRESTADA. QUEBRA DA CADEIA DE CUSTÓDIA DA PROVA. FALTA DE ACESSO À INTEGRALIDADE DAS CONVERSAS. EVIDENCIADO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM A EXISTÊNCIA DE ÁUDIOS DESCONTINUADOS, SEM ORDENAÇÃO, SEQUENCIAL LÓGICA E COM OMISSÃO DE TRECHOS DA DEGRAVAÇÃO. FILTRAGEM ESTABELECIDA SEM A PRESENÇA DO DEFENSOR. NULIDADE RECONHECIDA. PRESCRIÇÃO CONFIGURADA. RECURSOS PROVIDOS. DECRETADA A EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. 1. A quebra da cadeia de custódia tem como objetivo garantir a todos os acusados o devido processo legal e os recursos a ele inerentes, como a ampla defesa, o contraditório e principalmente o direito à prova lícita. O instituto abrange todo o caminho que deve ser percorrido pela prova até sua análise pelo magistrado, sendo certo que qualquer interferência durante o trâmite processual pode resultar na sua imprestabilidade (RHC 77.836/PA, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 05/02/2019, DJe 12/02/2019). 2. É dever o Estado a disponibilização da integralidade das conversas advindas nos autos de forma emprestada, sendo inadmissível a seleção pelas autoridades de persecução de partes dos áudios interceptados. 3. A apresentação de parcela do produto extraído dos áudios, cuja filtragem foi estabelecida sem a presença do defensor, acarreta ofensa ao princípio da paridade de armas e ao direito à prova, porquanto a pertinência do acervo probatório não pode ser realizado apenas pela acusação, na medida em que gera vantagem desarrazoada em detrimento da defesa. 4. Reconhecida a nulidade, inegável a superveniência da prescrição, com fundamento no art. 61 do CPP. 5. Recursos especiais providos para declarar a nulidade da interceptação telefônica e das provas dela decorrentes, reconhecendo, por consequência, a superveniência da prescrição da pretensão punitiva do Estado, de ofício. (REsp 1795341/RS, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 07/05/2019, DJe 14/05/2019).
Sobre o tema, importante lembrar que os ministros do STF corrigiram a ementa do acórdão proferido na AP 508 sobre a transcrição total das interceptações telefônicas. Por maioria, os ministros entenderam que a antiga ementa não espelhou fielmente o conteúdo do acórdão e reafirmaram a jurisprudência de que não é obrigatória transcrição integral de interceptação telefônica, salvo nos casos em que esta for determinada pelo relator do processo.
Assim, os Ministros refizeram o texto para a seguinte redação:
“Não é necessária a degravação integral das conversas oriundas de interceptações telefônicas, bastando a degravação dos excertos que originaram a denúncia e a disponibilização do conteúdo integral das interceptações telefônicas realizadas. Caso o relator entenda necessário, poderá determinar a degravação integral das interceptações telefônicas promovidas”.
Concluindo, é preciso reconhecer que, por certo, não há ampla defesa, contraditório, paridade de armas e devido processo legal quando as provas não podem ser acessadas pela defesa, como seria, no mínimo, de rigor.