
Palestra com Júri Simulado em Alegrete
23 de julho de 2015
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24 de julho de 2015(In)adequação dos fins sancionatórios face à real experiência punitiva

Domesticam-se as feras e animalizam-se os homens, enquanto aquelas estão soltas, esses estão presos. Maltratar a fauna é crime, e matar homens? Os detentos do país do carnaval invejam canis, eis que submetidos a tratamento que nem aos animais se dispensa. Isolados do habitat natural, são encarcerados em condições despersonalizadoras, onde passam a vegetar, mofar e apodrecer.
A formação histórica da pena na terrae brasilis evidencia profundas desigualdades econômicas, com uma estrutura social extremamente hierarquizada, cujas diversas formas de castigar e punir vêm enraizadas na crença inatacável de retribuição para conter e eliminar os sujeitos incômodos, impingindo sofrimento e dor a determinados segmentos sociais. São esses indivíduos maus, causadores de situações de perigo, que afloram o sentimento de insegurança nas pessoas racionais/boas, semeando eficazmente a ideia de existência do “inimigo” que precisa ser detido. Daí eclodem discursos de emergência com reinvindicações sociais em busca da proteção estatal.
Oportunamente Lopes Jr. (2015, p. 41) expõe: “eis os impuros, os objetos fora do lugar. O discurso da lei e da ordem conduz a que aqueles que não possuem capacidade para estar no jogo sejam detidos e neutralizados, preferencialmente com o menor custo possível. Na lógica da eficiência, vence o Estado de Penitência […]”.
Correspondente à simplicidade do dizer “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” é a dificuldade de vivenciar a prática. Grande violador dos direitos humanos e impositor de penalidades em um sistema arcaico degradado, o Estado brasileiro, no afã de legitimar seu discurso jurídico-penal, maximiza as ações repressivas – através do fenômeno de expansão do Direito Penal – para diminuir as angústias e temores da população. Donde sobrevém a banalização punitivista com sermões de ódio propagados pelos meios de comunicação de massa àqueles socialmente vulneráveis, os “inimigos”, responsabilizados e enclausurados para a proteção de uma ordem pública abstrata. Mas “cada esquema de pureza gera sua própria sujeira e cada ordem gera seus próprios estranhos” (BAUMAN, 1997, p. 14).
A “solução do conflito através da supressão do ‘mau’ é o modelo que se introjeta nos planos psíquicos mais profundos, pois são recebidos em etapas muito precoces da vida psíquica das pessoas”, Zaffaroni (1991, p. 128). Especificamente, as campanhas de “lei e ordem”, com a proliferação de indignação moral, instigação à violência e frases de senso comum – “a impunidade é absoluta”; “os menores podem fazer qualquer coisa”; “os presos entram por uma porta e saem pela outra” – são desencadeadas pelos meios de massa quando as agências estatais se sentem ameaçadas no exercício do poder. Desse modo, a introjeção da violência pelo setor midiático, grande criador da ilusão do sistema penal, impede que a sociedade perceba a realidade falaciosa dos discursos justificadores.
Prescindível conhecimento aprofundado para notar que o sistema carcerário é ineficaz e que as pessoas por ele abarcadas são aquelas estigmatizadas através da fabricação do estereótipo do criminoso. Fosse a previsão legislativa incrementada indistintamente, produzir-se-ia o efeito indesejável de criminalizar diversas vezes toda a população, provocando uma catástrofe social. Obviamente essa suposição é absurda, aos amigos dedicamos as garantias e benesses da lei, aos inimigos seus rigores, tudo a endossar a arbitrariedade seletiva dos órgãos executivos do sistema penal. Não bastasse isso, contamos com um exercício de poder à margem da legalidade – homicídios, torturas, sequestros e corrupção cometidos pelas agências executivas –, que é escondido pelas cortinas esquizofrênicas do saber jurídico e mascara um verdadeiro genocídio em marcha.
A legitimidade do sistema penal é utópica e atemporal, pois não se realiza em lugar e tempo algum. Ao revés, a taxa de reincidência nada indica sobre a capacidade de a prisão modificar comportamentos, mas denuncia as engrenagens viciadas da justiça criminal. Percebe-se, então, que a política criminal nada mais é do que uma reação simbólica, cujos instrumentos utilizados são ineptos para combater a criminalidade real. Transparece uma crise de efetividade e legitimidade do Direito Penal, na medida em que inócuo para o fim ao qual supostamente se destina – tutela de bens jurídicos e regras sociais mínimas.
Os modelos de periculosidade individual, característicos das doutrinas de defesa social, indicam que além da ilegalidade e da ofensa concreta aos bens jurídicos, o desvio se qualifica pelo caráter imoral e antissocial da conduta. Defendem que a pena possui uma finalidade nobre e, portanto, sua aplicação é necessária. Partem daí os discursos de justificação da pena e, por conseguinte, legitimação do poder punitivo. Se o propósito oficial é impor penas exemplares para reformar e ressocializar o homo criminalis e com isso prevenir futuros delitos, as funções latentes demonstram o contrário, revelando que “o fracasso aparente integra o sucesso real das instituições totais” (CARVALHO, 2015, p. 226).
Sobre o tema, Da Rosa e Khaled Jr. asseveram que se trata de “jogo de cartas marcadas e quem perde é sempre o mais vulnerável” (2014, http://justificando.com). O indivíduo inadequado à estética criminológica ou à moral punitivista se transforma em objeto a ser eliminado, seres aos quais os direitos humanos não podem ser garantidos. É o asno chocando o ovo da serpente.
Se instalou uma espécie de depravação do foco do sistema penal, que foi promovido de última à primeira e única ratio, para sucumbir à opinião pública –fomentada pela mídia – com a implantação de verdadeira caça às bruxas. Contrapondo as barbáries produzidas, sob o manto das teorias justificadoras, está a matiz teórica que nega a atividade estatal sancionadora conhecida por abolicionismo penal. Dito movimento fornece elementos importantes ao debate sobre a contração do sistema penal/carcerário e apresenta meios concretos de eliminação e alternativas aos regimes punitivos. As pessoas não sabem o quão irracional são nossas prisões, pois são levadas a acreditar que funcionam. A irracionalidade verdadeira das prisões é um dos segredos melhor guardados em nossa sociedade. Se o segredo fosse revelado, destruiria as raízes do sistema atual e implicaria o começo de sua ruína.
Pontua Christie (1984) que o sistema penal se destina exclusivamente à produção de dor e imposição de sofrimento, indicando como estratégia a redução ou imposição mínima de castigo. Doutra banda, Hulsman (1993, p. 88) entende que as formas de controle formal devem ser totalmente abandonadas, visto que “a justiça penal é incontrolável, distribuidora de sofrimento desnecessário, materialmente desigual e expropriadora dos direitos dos envolvidos no conflito, principalmente das vítimas. Assim, o sistema penal é especificamente concebido para fazer o mal”.
Para Foucault (2013, p. 209) o propósito de reformulação nasce com a própria prisão, tendo em vista que “pouco mais de um século o clima de obviedade se transformou, não desapareceu. Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando não inútil. E, entretanto, não vemos o que pôr no seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão”. Aparentemente convictos da benevolência do poder punitivo, os discursos penais contemporâneos se limitam a responder à pergunta “por que punir?” com o intuito de fundamentar a utilidade da pena: intimidar/prevenir, ressocializar/recuperar/regenerar, castigar/retribuir que, na verdade, se traduz em uma vingança emotiva e desproporcional.
Independente de quais sejam, ou possam ser, os fins da pena, sobressai a indispensabilidade de instrumentos/meios oportunos e adequados para sua persecução, cenário distante da nossa realidade marginal.
Em que pese a discussão sobre (i)legitimidade das funções atribuídas à pena, bem como a inversão ideológica dos direitos dos apenados, insta salientar que com o advento da Constituição de 1988 o projeto sancionatório foi alterado, precipuamente no tocante aos princípios relativos à punição. Com efeito, a alteração substancial nesse contexto é a ausência de qualquer discurso legitimador da pena. Ou seja, os fundamentos relativos à pena se restringem às formas de sanção e os limites punitivos, tendo o constituinte abdicado da resposta ao por que punir? e direcionado suas energias para delimitar como punir?
O corolário lógico da ausência do discurso legitimador e a determinação de critérios limitativos à interpretação, aplicação e execução é a projeção da política punitiva de redução de danos, conhecida como teoria agnóstica da pena, que inibe os excessos inerentes ao exercício político do poder de punir.
A Constituição elenca apenas meios de minimizar o sofrimento imposto pelo Estado ao condenado, abstendo-se de quaisquer fins, funções ou justificativas. Em seu artigo 5º, a Carta Republicana baliza a imposição das penas pelas ideias de pessoalidade, individualização, humanidade e respeito à integridade física e moral com vedação à pena de morte, prisão perpétua e trabalhos forçados. Mas o dispositivo mais significativo da política penalógica de redução de danos é encontrado na alínea e do inciso XLVII, que expõe a proibição do excesso punitivo, negando, em qualquer hipótese, a execução de penas cruéis.
Com vistas à desigualdade e barbárie produzidas pelos aparelhos de repressão penal, sob o manto dos princípios da criminologia da reação social que dissemina a seletividade, a teoria da pena exsurge supérflua ante a possibilidade de (re)construir o direito penal com a precípua finalidade de redução da violência do exercício de poder. Atenuar a dor e o sofrimento representa o único motivo de justificação da pena nas condições em que é exercida. Baratta (2014, p. 202) esclarece que se trata “principalmente, de aliviar, em todos os sentidos, a pressão negativa do sistema punitivo sobre as classes subalternas, e os efeitos negativos desta pressão para o destino dos indivíduos e para a unidade da classe operária, que o sistema penal concorra para separar, drasticamente, de suas camadas marginais”.
De mesma sorte, Barreto (1996, p. 650) sugere: “quem procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que já não encontrou, o fundamento jurídico da guerra”. Pena e guerra legitimam, portanto, pela distribuição de violência e imposição desenfreada de dor. Emerge, nesse momento, a indagação: por que conservar como efeito o que é causa?
Alicerçar uma visão realista sobre o fenômeno pena, abdicando da busca de legitimação do ilegítimo (esquizofrenia secular), permite delinear diagnóstico menos equivocado do problema do sancionatório atual, com vistas a obstaculizar ao máximo as estruturas do poder punitivo. Imperiosa a consciência fundamental de que guerra e pena são ilícitas e ao mesmo tempo impossíveis de erradicar. Contudo, esse fato não impede a canalização de esforços para limitar seus aspectos mais desumanos.
A postura agnóstica permite o despertar da consciência do operador jurídico para atuar acerca da institucionalização deteriorante do cárcere, conduzindo seu saber e sua atenção para a máxima neutralização dos efeitos agonizantes dos calabouços legais e para a diminuição da vulnerabilidade dos indivíduos e grupos criminalizados. Tais premissas seriam regulamentadoras de uma prática sem pretensões impossíveis ou utópicas.
As dinâmicas medievais que persistem no sistema punitivo brasileiro indicam, de todos os ângulos, que a prisão é contraproducente. Qualquer que seja a justificativa dada à finalidade da pena esbarra na realidade catastrófica emanada pela prosperidade irrestrita do poder de punir: o acúmulo de cadáveres produzidos pelo direito penal. Quiçá, com a efetivação de penas mais humanas a agonia daqueles esquecidos nas masmorras estatais diminua.
REFERÊNCIAS
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2014.
BARRETO, Tobias. Fundamentos do direito de punir. Revista dos Tribunais (727). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Claudia M. Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
CARVALHO, Salo de. Anti manual de criminologia. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Cidade do México: Fondo da Cultura Económica, 1984.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 41. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
HULSMAN, Louk & CELIS, J.B. Penas perdidas. Niterói: Luan, 1993.
LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015.
ROSA, Alexandre Morais da; KHALED JR, Salah H. Somos todos um só: fair play democrático como estratégia de contenção contra o programa criminalizante padrão FIFA de exceção. 2014. Disponível em: <http://justificando.com/2014/06/17/somos-todos-um-fair-play-democratico-como-estrategia-de-contencao-contra-o-programa-criminalizante-padrao-fifa-de-excecao>. Acesso em: 20 mai. 2015.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991.